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06/01/2018 12:01
Cultura
Morre o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony / Foto: Ana Branco / Agência O Globo

 RIO - O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony morreu na noite de sexta-feira, aos 91 anos, vítima de falência múltipla dos órgãos. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele deixa viúva e três filhos. Cony estava internado no Hospital Samaritano, na Zona Sul do Rio.

 

"Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe”, diz a certa altura o protagonista do romance de estreia de Carlos Heitor Cony, “O ventre” (1958). Aos 32 anos, Cony resumiu nessa frase o ceticismo irônico que o acompanhou por toda a vida. Na juventude, estudou para ser padre, mas abandonou o seminário. Durante a ditadura, como jornalista, escreveu contra o autoritarismo, foi perseguido pelo regime, mas não se furtou a criticar dogmas de esquerda, e por isso foi acusado de alienado. Em seus romances, expressou com uma linguagem seca e por vezes sarcástica suas dúvidas e desencantos sobre a sociedade brasileira e a condição humana.

 

Nascido em 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, subúrbio carioca, Carlos Heitor Cony foi uma criança de poucas palavras. Filho do jornalista e funcionário público Ernesto Cony Filho e Julieta de Moraes Cony, tinha um problema de dicção que o impediu de frequentar a escola regular e aprendeu a ler e escrever com o pai. Aos 11 anos, depois da primeira comunhão na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, em Mangaratiba, Cony começou a frequentar o Seminário de São José, no Rio Comprido. Dois anos depois, iniciou carreira de seminarista.

 

A experiência no seminário o marcou para toda a vida. Em entrevista à revista “IstoÉ”, em 1993, afirmou que “a única coisa que eu realmente quis na vida foi ser padre”. O ceticismo, porém, o impediu. O São José foi a grande escola de formação intelectual do escritor. Lá estudou latim, português, grego, francês, italiano, música, matemática, filosofia, psicologia, ética e até cosmologia. Devorador de livros e crítico implacável, definiu assim o abandono da formação para o sacerdócio: “Comecei a duvidar de tudo. Comecei a preferir Santo Agostinho a São Tomás de Aquino. Foi um ponto de atrito, porque toda a filosofia dos seminários, hoje (na época), é tomista. Eu tinha muito mais interesse pessoal na figura de Santo Agostinho, com aquele passado devasso, do que na filosofia angélica. Eu não achava nenhuma graça nele”.

 

Um ano depois de largar o seminário, em 1946, Cony se inscreveu no curso de Letras Neolatinas da Faculdade Nacional de Filosofia, mas não chegou a concluí-lo. No mesmo ano, começou a colaborar para a imprensa, ajudando o pai no “Jornal do Brasil”. Em 1947, recebeu sua primeira carteira de jornalista como redator da Gazeta de Notícias. Mas sua carreira começaria para valer cinco anos depois, na Rádio Jornal do Brasil. Contudo, não acompanhou o colega Reynaldo Jardim na mudança para o jornal. Jardim, junto com Jânio de Freitas e Odílio Costa Filho foram as cabeças por trás da revolucionária reforma gráfica e editoral do diário, no final dos anos 1950.

 

Na época, Cony estava decidido a ser escritor. E foi um dos mais prolíficos. Entre 1955 e 1972, publicou nove romances em sequência. O primeiro, “O ventre”, foi inscrito no concurso de literatura patrocinado pela Secretaria de Educação e Cultura em associação com a Academia Brasileira de Letras (ABL). Apesar de ser apontado como o melhor romance, teve negado o Prêmio Manuel Antônio de Almeida por sua visão pessimista e sua linguagem rude. Em apenas nove dias, escreveu “A verdade de cada dia”, inscreveu-se novamente e ganhou o prêmio, em 1956, sob o pseudônimo Isaías Caminha, referência ao escrivão de Lima Barreto. No ano seguinte, venceu novamente o concurso com “Tijolo de segurança”. “Eu não fui o jornalista que se transformou em escritor, fui um escritor que se transformou em jornalista”, disse.

 

Em 1961, entrou no “Correio da Manhã” e lançou “Informação ao crucificado”, romance em forma de diário sobre um jovem seminarista em crise existencial. Um ano depois, deu início à coluna “Da arte de falar mal” e publicou “Matéria de memória”. Em 1964, mais uma ficção sua é editada, “Antes, o verão”. Considerado pouco politizado por seu pares, antes e depois do golpe militar, Cony foi atacado tanto pela direita quanto pela esquerda, que cobrava engajamento partidário. Ele respondeu em uma de suas crônicas: “Sou inteligente o bastante para não ser de direita, mas muito rebelde para ser de esquerda”. Em outro texto da época, disparou: “No dia em que me der na telha, pegarei no fuzil — e, ainda que não saiba manejá-lo, saberei contra que lado atirar”.

 

Em seus textos, até 1964, Cony não abordava a política com frequência. Também por isso tentavam rotulá-lo de “alienado”. E o escritor provocava: certa vez, disse que largou no meio o filme “Vidas secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, porque se sentia entendiado ante a visão de uma vaca. Contudo, foi uma das primeiras vozes a se levantar contra o regime militar, com a coluna intitulada “Da salvação da pátria”, em 2 de abril de 1964, apesar da posição de amplo apoio do “Correio da Manhã” ao golpe. Um de seus textos mais duros, “A revolução dos caranguejos”, rendeu ameaças anônimas contra suas filhas e uma operação policial na sua casa, em Copacabana. As crônicas do período foram reunidas no livro “O ato e o fato”, cuja primeira edição foi um sucesso de vendas e esgotou em poucas semanas.

 

Durante a ditadura, Cony foi preso seis vezes e também enquadrado na Lei de Segurança Nacional pelo então ministro da Guerra, General Costa e Silva (que mais tarde se tornaria presidente). O maior período de detenção foi após a decretação do AI-5, em 1968. A situação ficara insustentável. Cony aproveitou um convite para ser jurado do prêmio Casa de las Americas e viveu quase um ano em Havana. Retornou ao Brasil para assumir um cargo no grupo “Manchete”, a convite de Adolpho Bloch.

 

“(Adolpho) me ofereceu condições que eu gosto: bom salário, bom ambiente de trabalho. Não me pediu nada em matéria de compromisso ideológico, a não ser que eu compreendesse o desenho da casa. Ofereceu-me, em última análise, uma prisão confortável, com mordomia, podendo viajar e coisa e tal. Prisão por prisão, era melhor que o Batalhão de Guardas”, afirmou em entrevista a revista “Imprensa”, em 1993. Foram mais de 20 anos na Bloch Editores, onde dirigiu as revistas “Ele & Ela” e “Desfile”, além de participar da redação da “Manchete”, onde também foi editor e na qual voltou a publicar crônicas que, apesar dos anos de chumbo, eram plenas de alusões simbólicas à ditadura.

 

 

Em 1974, publicou aquele que pretendia que fosse seu último romance, “Pilatos”. Antes, lançara “Balé branco” (1966) e “Pessach: A travessia” (1967), com duras críticas ao Partido Comunista Brasileiro, o que lhe rendeu um boicote do Partidão, além de “Quem matou Vargas”, publicado em capítulos na revista “Manchete”. No entanto, nenhum alcançaria a repercussão de “Pilatos”. “Considero este meu romance definitivo. Depois dele, não tinha mais nada a fazer” disse em entrevista a “Folha de S. Paulo”, em setembro de 2012.

 

Mas Cony voltou a publicar um livro, por um motivo que pode ter surpreendido os que viam apenas como um cético. No início dos anos 1990, sua cadela Mila ficou doente e ele voltou a escrever “para suportar o sofrimento de ouvir seus gemidos”, como disse ao GLOBO em 2012. O resultado foi “Quase memória”, mescla de ficção e autobiografia em que o narrador parte da descoberta de um envelope com a letra do pai, morto havia dez anos, para fazer uma revisão lírica e afetuosa do passado.

 

Lançado em 1995, o livro se tornou um grande sucesso, vendendo mais de 400 mil exemplares, e foi adaptado para o cinema em 2015, pelo diretor Ruy Guerra. Cony o definia como “um desabafo” e relegava os romances que publicou depois a um lugar secundário em sua obra, mero resultado de “pressões comerciais”. Mas muitos leitores e críticos saudaram livros como “O piano e a orquestra” (1996), “A casa do poeta trágico” (1997) ou “A tarde da tua ausência” (2003), que colecionaram prêmios. “Quase memória” e “O piano e a orquestra” venceram o Prêmio Jabuti, assim como “Romance sem palavras”, em 2000.Em 1996, Cony também recebeu o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. O último romance do autor, "A morte e a vida" (2007), abordou o polêmico tema da eutanásia.

 

Enquanto retomava a carreira de romancista, continuava na imprensa. Na década de 1990, após deixar a Bloch, Cony voltou a colaborar com a “Folha”, numa coluna que manteve ativa até a sua morte. Em 2000, foi eleito para a ABL, na vaga de Herberto Sales. Mas várias vezes direcionou sua ironia seca à instituição, que em entrevista recente ao GLOBO chamou de “jardim de infância às avessas”: “No jardim de infância você não tem passado mas um futuro o espera, com relações novas e amigos vindouros. Na academia, não temos futuro. Temos todos um passado, se é que temos, bom, brilhante ou medíocre”.

 

Em 2004, o escritor foi muito criticado ao ter aprovado o seu direito a uma pensão vitalícia de R$ 23 mil (valores da época) como compensação à sua demissão do “Correio da Manhã”, em 1965, por críticas ao regime militar. Em um texto no site “Observatório da Imprensa”, Cony rebateu dizendo que apresentou um dossiê de mais de 100 páginas para comprovar a perseguição sofrida e que, se estivesse a cargo do postulante decidir o valor, “teria pedido quantia maior”.

 

 

 

 

Fonte: Extra

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