16/05/2018 09:38:35
Mundo
Sem criação da Palestina, Israel viverá apartheid, diz rabino progressista no Brasil
Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil, elogia Trump ('tem se mostrado eficiente'), que transferiu Embaixada americana para Jerusalém, e diz que postergar resolução do conflito criará 'situação insustentável' para Estado judeu.
Foto: Reprodução/ BBC

A última erupção do conflito em Gaza, com a morte de dezenas de palestinos que protestavam contra a transferência da embaixada americana para Jerusalém, sinaliza a recusa das autoridades dos dois lados em resolver um impasse que se arrasta há décadas, diz à BBC Brasil o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil.

 

 

Conforme a solução é postergada, Bonder afirma que crescem as chances de que a criação de um Estado palestino se torne inviável e de que palestinos passem a viver num regime de apartheid dentro de Israel - o que colocaria em xeque a existência do Estado judeu.

 

 

"A paz é importante para a sobreviência de Israel a longo prazo", diz o rabino, famoso por sua posição mais progressista.

 

 

Formado em Engenharia e Literatura Hebraica pela Universidade Columbia, nos EUA, Bonder ordenou-se rabino em Nova York, em 1986. Desde então, tornou-se um dos líderes religiosos brasileiros com maior projeção internacional, autor de 21 livros traduzidos para várias línguas.

 

 

Seu bestseller A Alma Imoral foi adaptado pela dramaturga Clarice Niskier para o teatro e inspirou um documentário que Bonder está produzindo com o cineasta Silvio Tendler. Outra obra, Exercícios d'Alma, rendeu-lhe em 2000 o prêmio Jabuti na categoria religião.

 

 

Nascido em Porto Alegre há 60 anos e radicado no Rio de Janeiro desde os seis, Bonder também ganhou visibilidade no meio religioso por suas posições progressistas em temas morais. Favorável à descriminalização do aborto e ao casamento gay, tornou-se alvo de críticas e ressalvas entre grupos de judeus mais conservadores, com quem diz ter uma relação por vezes tensa.

 

 

Como no judaísmo rabinos não estão subordinados a um órgão hierárquico central como o Vaticano e têm relativa autonomia, diz se sentir à vontade para continuar difundindo suas ideias, desde que siga legitimado por sua comunidade.

 

 

Bonder recebeu a BBC Brasil na tarde de terça-feira no Midrash, centro cultural que dirige no Leblon, bairro nobre do Rio. Confira os principais trechos da entrevista.

 

 

 

BBC Brasil - Conversamos enquanto palestinos enterram mais de 50 pessoas que foram mortas nos últimos dias por forças israelenses ao protestar em Gaza. Qual sua visão dos eventos?

 

 

Nilton Bonder - Acho uma tragédia e um horror pelo número de mortos. É um evento cíclico. Já houve dois levantes suicidas de Gaza. Este é o terceiro. Por um lado, é uma tentativa de invasão de um país. Não é uma caminhada pacífica, independentemente de ser meritória ou não.

 

 

E tem obviamente uma resposta muito violenta. A pergunta é: como não fazer isso? O Exército de Israel tentou conter a invasão de outras formas. Mas, não tendo resultado, fizeram algo para evitar algo que talvez fosse até maior. Se os palestinos invadissem, que tipo de confronto haveria? Para mim, o mais grave é que a solução do conflito israelense-palestino continua sendo postergada.

 

 

BBC Brasil - Críticos dizem que Israel agiu com força desproporcional.

 

 

Bonder - A Palestina está nas mãos de Israel, que é uma nação muito mais poderosa. Mas a condição de Israel não é tão simples. Nenhum país abre mão de sua segurança. Veja a situação na Síria. Aquele país foi pulverizado. Não há como tirar isso da cabeça de quem mora em Israel. O Líbano, basta um sopro e ele desmonta. A Jordânia, idem.

 

 

BBC Brasil - Não há exagero em comparar a situação na Síria com a de Israel, uma potência nuclear apoiada pelos EUA?

 

 

Bonder - O problema de Israel não é o desaparecimento, a fragmentação total, mas ficar nesse lugar de ser posto na parede. É um país cercado por hegemonias. Turquia e Irã são duas potências regionais reais. Poucas décadas atrás, havia discursos e tentativas de tornar Israel um inimigo comum. Isso não é uma fantasia.

 

 

BBC Brasil - O senhor escreveu que a paz se alcança com o equilíbrio entre compaixão e severidade. Tem faltado compaixão e sobrado severidade a Israel?

 

 


Bonder - Minha preferência é que houvesse mais determinação por compaixão. Manter sob controle uma população (palestina) é sempre uma violação de direitos humanos. Mas as ações dentro de Israel não são excessivamente brutas com o intuito de dominar. Elas são uma percepção muito clara de que, se você não falar alto numa região onde a cultura é machista, você dança. É um mundo que não é a Europa.

 

 

BBC Brasil - Como avalia a decisão dos EUA de mudar sua Embaixada para Jerusalém?

 

Bonder - Entendo que entre muitos países haja um desejo de que o status de Jerusalém não fique totalmente determinado e esteja resguardado para uma negociação de paz entre dois Estados. Por outro lado, do ponto de vista israelense, Jerusalém foi o ponto focal do sonho judaico. A capital não ser Jerusalém seria quase um absurdo, um atendimento a um olhar externo que nenhum país soberano faz.

 

 

Essa questão tem legitimidade e deveria avançar por algum processo próprio, sem que, ao reconhecê-la como capital, os países estivessem forçosamente definindo um status definitivo para a cidade. A mudança da Embaixada americana para Jerusalém não inviabiliza conceitualmente que também possa existir uma Jerusalém capital palestina, no lado oriental, e uma futura embaixada americana lá. O grande problema é que Trump dá esse passo de maneira quase provocativa, com uma retórica muito assertiva. É uma estratégia muito comum na direita: criar fatos muito claros para possibilitar negociações.

 

 

BBC Brasil - Alguns veículos jornalísticos nos EUA levantaram a hipótese de que, ao transferir a Embaixada, Trump estivesse na verdade atendendo a demanda de um judeu americano que fez uma grande doação à sua campanha.

 

 

Bonder - Acho uma visão um pouco folclórica. Está muito mais em jogo o interesse político do Trump em se reeleger. Tenho que reconhecer que, apesar de fazer tudo politicamente errado, ele tem se mostrado genial no que tem feito. Porque, por métodos que considero totalmente equivocados e colocando em risco conquistas internas e externas da sociedade americana, ele tem se mostrado bastante eficiente.

 


BBC Brasil - Como o impasse na região poderia ser superado?

Bonder - Vejo duas maneiras: uma seria uma força externa empurrar Israel a negociar. Hoje acho que essas forças não têm interesse. Os EUA, pela presença dos judeus nos EUA e pelos interesses americanos no Oriente Médio. A própria Rússia, por incrível que pareça, tem uma dubiedade muito grande de interesses em relação a Israel.

 

 

A outra maneira seria uma paz em que se estabelecesse o real status quo da região. Lá atrás, israelenses e palestinos eram duas forças semelhantes, que teriam encontrado um modus vivendi dentro das forças reais do lugar. Mas os palestinos não tiveram muita voz ativa nas negociações, porque não tinham uma organização e foram representados por países árabes com interesses totalmente diferentes dos seus.

 

 

O equilíbiro de forças mudou. O peso econômico e populacional de Israel é hoje muito maior. A construção mítica palestina, que em dado momento chegou a ser a erradicação de Israel, hoje é fantasiosa. E conforme o tempo passa, eles vão perdendo mais. Há a ideia de que, se os palestinos não negociarem nessas condições, será ainda pior no futuro. A questão dos assentamentos é o elemento mais complexo. Acho que foi feito propositalmente para criar uma situação de uma negociação mais vantajosa para Israel do ponto de vista territorial.

 

 

BBC Brasil - A estratégia de empurrar a solução para frente traz riscos?

 

 

Bonder - Ela é muito arriscada para Israel, porque os palestinos vão ficando cada vez mais sufocados. E poderá chegar um momento em que vão perder a viabilidade, se é que já não perderam, de ser um Estado. A paz é importante para a sobreviência de Israel a longo prazo. O futuro de Israel é de alguma forma uma integração daquela região. Sem ela, Israel vai ficar para sempre com uma população que não vai fugir de um apartheid. A normatização dessa vida, que vem progredindo cada vez mais, será um apartheid.


BBC Brasil - Já não vigora em Israel alguma forma de apartheid?

 

 

Bonder - Hoje não considero que haja, pois aquilo é um lugar em guerra. Há uma relativa autonomia em Gaza e na Cisjordânia. A opressão aparece quando o palestino quer entrar em Israel ou tem de se locomover. Tem características de apartheid, mas não é nos moldes da África do Sul, porque não existe uma ideologia desse domínio - a não ser em grupos pequenos da direita e radicais religiosos. Mas a normalização da vida nessas condições produz aspectos de apartheid, de diferenciações entre cidadanias. É insustentável o governo israelense jogar isso para o longo prazo.

 

 

BBC Brasil - Esse apartheid não poderia inverter as forças em Israel, como houve na África do Sul com a ascensão dos negros? Os palestinos podem acabar no comando em Israel?

 

 

Bonder - A grande diferença é que a maioria da África do Sul era negra. Aquilo realmente não tinha sustentabilidade. O problema para Israel é a junção dos 20% dos árabes que vivem lá com os de Gaza e os da Cisjordânia e, no futuro, com a taxa de natalidade que eles têm, podem sim superar os judeus. É um perigo futuro, mas não há hoje uma minoria administrando uma maioria.

 

 

BBC Brasil - Que acha do movimento pelo boicote de Israel?

 

 

Bonder - Acho de uma hipocrisia absurda, porque ninguém faz isso com a Rússia ou outros países que têm problemas de direitos humanos. Capitaliza o fato de que Israel é pequena e canaliza um olhar com um antissemitismo dissimulado. Essa estratégia reforça uma reação de Israel e dos judeus, porque eles identificam que ali tem dois pesos e duas medidas.

 

 

BBC Brasil - Como o senhor encara a aproximação entre Israel e igrejas evangélicas brasileiras?

 

 

Bonder - Com muita preocupação. Para Israel, é muito negativo ser queridinha do Trump e ter o apoio desse grupo. Israel é muito apresentada como um país do mal, um país que faz coisas erradas. Toda vez que aparece um grupo que a apoia, é muito sedutor para a comunidade judaica. Só que essa é uma armadilha para a comunidade judaica. Dou muita importância à questão das minorias, dos preconceitos, da liberade religiosa. Como você pode estar junto de um grupo que trava uma guerra silenciosa contra tradições afrobrasileiras? Com ideias anti-imigração? A ampla maioria dos judeus é imigrante.

 

 


BBC Brasil - Por que o senhor criticou o clube Hebraica do Rio de Janeiro por convidar o deputado Jair Bolsonaro a fazer uma palestra?

 

 

Bonder - Porque houve um sequestro de representatividade. Devem existir 50 entidades judaicas no Rio de Janeiro. A Hebraica talvez seja a menos representativa. É um clube falido. Quando o nome Hebraica, um nome sugestivo de representatividade, apareceu junto com bandeira de Israel, achei um absurdo. Usurparam a imagem.

 

 

BBC Brasil - O apoio a Bolsonaro é minoritário entre judeus brasileiros?

 

Bonder - Totalmente. A comunidade judaica sempre teve radicais nos dois extremos, na esquerda e na direita. A grande maioria das pessoas está no centro.

 

 

BBC Brasil - O presidente da Confederação Israelita do Brasil, Fernando Lottenberg, disse que um manifesto recente do PSOL em que Israel era chamado de "Estado genocida" expressava antissemitismo. O que achou do manifesto?

 

Bonder - É quase um absurdo que as pessoas fiquem tão horrorizadas e chamem isso de genocídio quando, numa cidade como o Rio, morra mais gente em um ano que nos 70 anos do conflito israelo-palestino. Obviamente tem uma marcação política aí. São dois pesos e duas medidas. Por que a esquerda elege certos temas como suas grandes bandeiras e foge de outros? E faz uma leitura muitas vezes de Israel que tem características antissemitas, sim. Há uma tentativa de vinculá-la ao capital, ao domínio do mundo. Tem reverberações ali, como nesse manifesto, que realmente soam antissemitas. O que não tem nada a ver com uma esquerda que se posicone a favor da causa palestina e que esteja a favor de questões contrárias a interesses de Israel ou da comunidade judaica. Isso é legítimo.

 

 

BBC Brasil - Como o senhor, um líder religioso, encara a crescente influência de políticos religiosos no Brasil?

 

Bonder - Já escrevi muitos artigos contra a mistura Estado-Igreja, que continuo assinando embaixo. Mas é uma guerra perdida. É algo muito difícil de ser contido porque a identidade dos evangélicos é suprarreligiosa. Enquanto um católico é católico de religião, de alguma forma os evangélicos têm uma identidade de pertencimento a essa comunidade com interesses políticos específicos. É quase impossível dentro de uma democracia você negar a legitimidade se isso tem essa dimensão de identidade.


BBC Brasil - Acha que o aborto deveria ser descriminalizado?

 

Bonder - Sim. A manutenção (da lei proibindo o aborto) é a imposição de uma moral específica, de um grupo específico. E, do ponto de vista da saúde, é um crime com o Brasil.

 

BBC Brasil - É possível ser judeu sem acreditar em Deus?

 

Bonder - Completamente. O judaísmo não é uma religião moderna, ele não advém de ideias levadas para alguns lugares com o interesse de produzir identidades ou reduzir a beligerância, caso do que houve no Império Romano (com o Cristianismo) ou do que Maomé fez (com o Islã) ao unificar tribos que batalhavam desde tempos antigos. O judaísmo não nasce assim, ele nasce como uma religião-estado. Aquele povo tinha suas crenças, e essas crenças estavam misturadas com a cultura e a tradição. O judaísmo teve de se reiventar como uma religião a partir do Iluminismo, quando as outras religiões cobravam isso. Mas a identidade é muito mais ampla. A riqueza da história judaica, o sofrimento, a questão nacional de Israel - há várias âncoras para essas identidades que estão acima do aspecto da crença em Deus.

 

 

BBC Brasil - Sua fé oscila?

 

Bonder - Sempre. A fé é uma luta constante do ser humano para preservar um olhar positivo para a vida, aconteça o que acontecer. Nesse lugar, a fé é sempre um desafio. Você não pode ter certeza de que não vai acontecer algo na sua vida que não vá colocá-la em questão. Aceitá-la como algo já determinado significa desligar a leitura crítica em relação à vida.

 

 

Ao mesmo tempo, acolho da tradição judaica e represento valores de uma fé inquebrantável: a fé coletiva dos judeus. Muitas vezes tenho que me meter em situações complicadas, em que as pessoas estão questionando essa dimensão de fé, e tento apresentá-la nessa dimensão coletiva. Ali ela é fixa, de alguma forma.

 

 


Mas, na minha experiência pessoal, considero isso uma constante batalha. Espero que, com minha maturidade, ela esteja mais sólida. Mas não tenho essa certeza.

 

 

Fonte: G1

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