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31/12/2018 10:38
Brasil
Dor, trauma de Réveillon e impunidade: os 30 anos da tragédia do Bateau Mouche
Naufrágio no Rio em 1988 por causa de excesso de passageiros e outras irregularidades deixou 55 mortos; sobreviventes que ainda lutam na Justiça por reparação.
/ Foto: Pedro Paulo Figueiredo/BBC News Brasil

Passava das 23h do dia 31 de dezembro de 1988, um sábado de chuva fina e mar agitado, quando o pescador Jorge Souza Viana, de 28 anos, saiu da Praia de Jurujuba, em Niterói, rumo à de Copacabana, na Zona Sul do Rio. Pelo sexto ano consecutivo, ele levaria a família e alguns amigos, a bordo de sua traineira de pesca, a Evelyn & Maurício, para assistir à queima de fogos. Mas, ao passar pela Ilha de Cotunduba, próxima ao Morro do Leme, desconfiou que havia algo errado. A uns 300 metros de distância, um barco de passeio começara a adernar.

Faltando dez minutos para a meia-noite, Jorge viu a proa do Bateau Mouche IV se erguer e a popa submergir nas águas frias da Baía de Guanabara. Os ocupantes da Evelyn & Maurício agiram rápido. Lançaram cordas, boias e coletes salva-vidas para resgatar os náufragos que estavam em alto-mar ou sobre o casco emborcado.

A operação durou 20 minutos e, segundo Jorge, salvou mais de 30 pessoas – entre elas, sete membros de uma mesma família, os Fiszman, e sete crianças, como Luciana Wajngarten, de apenas 2 anos. No naufrágio, Luciana perdeu os pais, Ruth e Alberto, e a irmã, Camila.

"Naquela hora, não consegui pensar em mais nada. Não parei para pensar que meu barco também podia virar por excesso de peso. A única coisa que eu queria era salvar o maior número possível de pessoas", recorda Jorge, hoje com 58 anos.

"Pra ser sincero, não salvei ninguém. Foi Deus quem salvou. Foi ele quem me colocou ali, naquele momento. Qualquer um, no meu lugar, faria o que eu fiz", diz o pescador, que em 2012 viveu outra história de naufrágio – no dia 1º de maio, seu barco foi a pique em Piratininga, depois de colidir contra as pedras, com dez pessoas a bordo.


Sua traineira, de 36 pés (cerca de 10 metros), não foi a única a prestar socorro às vítimas do Bateau Mouche IV. Pouco depois, o iate Casablanca, do empresário Oscar Gabriel Júnior, também começou a recolher náufragos. Por ser maior – 130 pés (ou 40 metros) –, conseguiu salvar mais gente.

"Não fosse a traineira do Jorge e o iate do Oscar, a tragédia teria sido ainda maior", garante o escritor Ivan Sant'Anna, autor de "Bateau Mouche - Uma Tragédia Brasileira (2015)." "Outro herói quase anônimo foi o garçom Heleno, do Bateau Mouche III. Quando a embarcação chegou ao local, ele pulou na água para resgatar outros três sobreviventes, que estavam prestes a ser engolidos pelas ondas."

Número de passageiros
A jornalista Elane Maciel, então com 38 anos, e sua irmã, a professora de Educação Física e fisioterapeuta Heloísa Helena, com 44, foram duas das mais de 30 pessoas que Jorge resgatou na noite do naufrágio.

Repórter do "Jornal do Brasil", Elane ganhou os convites de cortesia do jornalista José Carlos Tedesco, assessor de imprensa da Itatiaia Turismo, patrocinadora do evento.

Com saída prevista para as 21h, o passeio custava Cz$ 150 mil (algo em torno de R$ 780 pelos valores de hoje) e dava direito à ceia – peru, farofa, tender e fios de ovos – e música ao vivo. No convés principal, Elane e Heloísa não encontraram lugar para sentar. Todas as mesas já estavam ocupadas. Subiram para o deque superior, mas, lá em cima, tiveram que ficar em pé, espremidas ao lado dos músicos do conjunto Café com Leite. "Que programa de índio!", reclamou a jornalista.


Por volta das 22h15, o Bateau Mouche IV foi interceptado por uma lancha da Marinha. O primeiro-sargento Antônio Braga de Vasconcelos subiu a bordo e, como de praxe, verificou a documentação do barco e a habilitação do mestre-arrais, Camilo Faro.

Tudo indica que o barco teria sido liberado ali mesmo se Camilo não tivesse dito ao oficial que desconfiava de superlotação. Na dúvida, o Bateau Mouche IV teve que regressar ao restaurante Sol & Mar, na Enseada de Botafogo, de onde partira. "Ali, tive um mau pressentimento. Por que voltamos? Ninguém explicava", relata Elane.

Ao encostar, outro oficial da Marinha, o sargento José Reinaldo Franco, subiu a bordo e, na base do "olhômetro", começou a contar os passageiros. Da primeira vez, contabilizou 145. Da segunda, 149. Até hoje, ninguém sabe ao certo quantas pessoas o Bateau Mouche IV transportava na noite da tragédia. Pudera. Não havia lista de passageiros ou checagem de nomes. Muitos sobreviventes – em sua maioria, turistas estrangeiros – não se apresentaram à Justiça.

Aflitas, Elane e Heloísa pediram para saltar. Mas o mestre-arrais não chegou a atracar o barco. "Não pode", avisou um dos quatro tripulantes. "Procurem relaxar, o passeio é lindo!", aconselhou. Passados 20 minutos, o barco foi liberado. "Segundo testemunhas, os militares teriam sido subornados pelo pessoal da Itatiaia Turismo. Mas, durante o inquérito, essa acusação jamais foi provada", afirma Ivan Sant'Anna.

Como era dividido o Bateau Mouche, segundo o livro de Ivan Sant'anna — Foto: Ivan Sant'anna Como era dividido o Bateau Mouche, segundo o livro de Ivan Sant'anna — Foto: Ivan Sant'anna.

 

Fonte: G1

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